Lá se vão uns dez anos, por
baixo, que minha conversa com meu pai chegou ao diário de guerra. Eu estava de
folga no Rio e ele convidou para tomarmos chopp no Corujinha, em Copacabana.
Estava a segunda mulher dele, Maria Eugênia, minha irmã Edna, minha sobrinha e
afilhada Erika, além de Nádya. Num daqueles papos que envolvem outros irmãos,
meu pai acabou falando que tinha curiosidade de saber o que cada filho gostaria
de ficar como recordação dele. Eu me lembrei do relógio de ouro que nos
fascinava crianças e que ele tinha deixado de usar diariamente no Rio por medo
de assalto. Ele me disse que o relógio já estava prometido para meu irmão
Edson. Então eu disse: “Tudo bem. Então eu quero o diário que você escreveu na
guerra pra publicar”.
Acho que ele não esperava essa
escolha. Desconversou dizendo que não sabia nem onde o diário estava, que não
valia a pena, que devia estar no fundo de um armário utilizado como depósito. E
a conversa ficou nisso.
Esse diário era uma espécie de
livro místico para nós, filhos, que nunca ouvimos nosso pai falar uma palavra
que fosse sobre o período da guerra. A única pessoa que seguramente leu foi
minha avó, Dega, e os relatos dela fermentaram ainda mais nossa curiosidade de
crianças. Meus irmãos mais velhos chegaram a ler, escondidos, algumas páginas
manuscritas. Eu pessoalmente, nunca tinha visto tal diário, não tinha a menor
idéia da aparência dele e até me perguntava se ele existiria mesmo ou seria um
fruto da imaginação familiar.
Alguns meses após a morte de meu
pai, minha irmã Edna, a única filha a permanecer morando no Rio, me ligou
contando que estava na casa dela uma mala com as coisas da guerra que o meu pai
tinha deixado. Inclusive o diário. E combinamos que eu pegaria na minha próxima
viagem ao Rio.
Foi o que fiz, encontrando o
diário perfeitamente organizado, com documentos da época, como uma carta do
comandante dos aliados, Mark Clarck, aos oficiais brasileiros, mapas, mensagens
religiosas e dos comandantes brasileiros, manual de sobrevivência no mar,
passes de folga, bilhetes de cinema, postais e desenhos. Uma infinidade de pequenas
recordações primorosamente organizadas.
Mergulhei nos meses seguintes na
tradução do diário. E tive a idéia de publicar inicialmente no formato de blog,
com as atualizações exatamente 60 anos após a redação original. O blog
htto://diariodeguerra.zip.net até hoje é muito visitado, possui trechos
traduzidos nos Estados Unidos e eventualmente é citado em monografias e artigos
sobre a participação do Brasil na II Guerra Mundial. Daí para a edição em
livro, através da gráfica P&A, do amigo Cléber Pereira, foi um pulo.
Assim, daquela conversa, do blog
e do livro chegamos hoje ao documentário e ao projeto Piazza Brasile. A idéia
não é remoer o passado andando em círculos e, mesmo que ainda seja uma
homenagem ao meu pai, buscar novos e bombásticos dados históricos. Falta muito
a falar sobre a participação do Brasil na II Guerra, sim. Mas me interessa principalmente
aquilo que resistiu à omissão, à falta de cuidado com a memória e ao menosprezo
geral do lado do Atlântico em que nasci. O resto é o desejo humano de conhecer,
de descobrir, de criar, de transformar uma raiz, que seria a princípio apenas a
raiz de uma planta, numa referência universal.
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