sábado, 22 de dezembro de 2012

Um diário de herança


Lá se vão uns dez anos, por baixo, que minha conversa com meu pai chegou ao diário de guerra. Eu estava de folga no Rio e ele convidou para tomarmos chopp no Corujinha, em Copacabana. Estava a segunda mulher dele, Maria Eugênia, minha irmã Edna, minha sobrinha e afilhada Erika, além de Nádya. Num daqueles papos que envolvem outros irmãos, meu pai acabou falando que tinha curiosidade de saber o que cada filho gostaria de ficar como recordação dele. Eu me lembrei do relógio de ouro que nos fascinava crianças e que ele tinha deixado de usar diariamente no Rio por medo de assalto. Ele me disse que o relógio já estava prometido para meu irmão Edson. Então eu disse: “Tudo bem. Então eu quero o diário que você escreveu na guerra pra publicar”.
Acho que ele não esperava essa escolha. Desconversou dizendo que não sabia nem onde o diário estava, que não valia a pena, que devia estar no fundo de um armário utilizado como depósito. E a conversa ficou nisso.
Esse diário era uma espécie de livro místico para nós, filhos, que nunca ouvimos nosso pai falar uma palavra que fosse sobre o período da guerra. A única pessoa que seguramente leu foi minha avó, Dega, e os relatos dela fermentaram ainda mais nossa curiosidade de crianças. Meus irmãos mais velhos chegaram a ler, escondidos, algumas páginas manuscritas. Eu pessoalmente, nunca tinha visto tal diário, não tinha a menor idéia da aparência dele e até me perguntava se ele existiria mesmo ou seria um fruto da imaginação familiar.
Alguns meses após a morte de meu pai, minha irmã Edna, a única filha a permanecer morando no Rio, me ligou contando que estava na casa dela uma mala com as coisas da guerra que o meu pai tinha deixado. Inclusive o diário. E combinamos que eu pegaria na minha próxima viagem ao Rio.
Foi o que fiz, encontrando o diário perfeitamente organizado, com documentos da época, como uma carta do comandante dos aliados, Mark Clarck, aos oficiais brasileiros, mapas, mensagens religiosas e dos comandantes brasileiros, manual de sobrevivência no mar, passes de folga, bilhetes de cinema, postais e desenhos. Uma infinidade de pequenas recordações primorosamente organizadas.
Mergulhei nos meses seguintes na tradução do diário. E tive a idéia de publicar inicialmente no formato de blog, com as atualizações exatamente 60 anos após a redação original. O blog htto://diariodeguerra.zip.net até hoje é muito visitado, possui trechos traduzidos nos Estados Unidos e eventualmente é citado em monografias e artigos sobre a participação do Brasil na II Guerra Mundial. Daí para a edição em livro, através da gráfica P&A, do amigo Cléber Pereira, foi um pulo.
Assim, daquela conversa, do blog e do livro chegamos hoje ao documentário e ao projeto Piazza Brasile. A idéia não é remoer o passado andando em círculos e, mesmo que ainda seja uma homenagem ao meu pai, buscar novos e bombásticos dados históricos. Falta muito a falar sobre a participação do Brasil na II Guerra, sim. Mas me interessa principalmente aquilo que resistiu à omissão, à falta de cuidado com a memória e ao menosprezo geral do lado do Atlântico em que nasci. O resto é o desejo humano de conhecer, de descobrir, de criar, de transformar uma raiz, que seria a princípio apenas a raiz de uma planta, numa referência universal.

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